quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Constatação

Era uma vez uma menina que gostava de sonhar.

Ela sonhava com imensos campos verdes floridos, onde seu corpo, flutuante, passeava sobre as plantas rasteiras. Ela não tinha asas, mas voava mesmo assim.

Ela sonhava com pessoas sem rosto mas cheias de algo que em sonho se assemelha com afeto. Com o afeto mais puro que um indivíduo possa imaginar: e as pessoas sem rosto de repente eram identificadas pela menina como as pessoas que faziam parte de sua vida real. As pessoas não tinham rosto, mas ela acreditava naquele afeto mesmo assim.

Era uma vez uma moça que gostava de viver.

Ela vivia entre imensos prédios e construções, onde seu corpo, pesado, se debruçava sobre as mesas de bar e sobre braços - e abraços - de desconhecidos. Ela não tinha chão, mas caminhava mesmo assim.

Ela vivia entre pessoas de muitos rostos e facetas, mas vazias de algo que ela nunca soube muito bem o que era: e as pessoas de mil rostos se transformavam a cada segundo, e ela, a menina, confundiu o afeto sem rosto de seus sonhos com aqueles rostos ocos e secos de qualquer tipo de afeto. As pessoas tinham mil rostos, mas ela acreditava naquele afeto mesmo assim.

Era uma vez uma mulher que não gostava de sonhar.

Uma mulher que vivia entre pessoas e construções, com e sem facetas, com e sem sentimentalismos - e afetos. Uma mulher que havia percebido o quão vazio e ilusório um sonho pode ser, porque por mais que se sonhe, e por mais que se goste de sonhar, e por mais que se queira sonhar - e como ela sonhava alto! - não adianta: o afeto dos sem-rosto de seus sonhos nunca se corresponderia aos milhares de rostos que ela tem que encarar todos os dias. E, por mais que ela tentasse colar esses rostos de realidade naqueles afetos ilosórios, um dia eles sempre acabavam se descolando.

Até que um dia essa mulher, essa moça, essa menina descobriu: era só com a solidão que o rosto invisível tomaria forma de afeto. E sozinha, encontrou seu próprio rosto naquele afeto ilusório, afeto que, a partir de então, tomara vida e se tornara real. Afeto que se escondia em si, e que nunca seria possível de resgatar se ela não percebesse o quão mesquinho e vil um pseudo-rosto afetuoso e alheio poderia ser.

Era uma vez uma mulher que aprendeu a gostar de si mesma.

***

[Ela perdeu a ilusão; mas sonha, mesmo assim.]