sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Do asco

Os olhos atentos buscavam por algo que ela não sabia discernir. Ela entrou no cômodo escuro e superlotado que trazia o odor característico e ainda tão vívido das rações animais, distribuídas em sacos desordenadamente espalhados pelas laterais do recinto. Nas paredes, prateleiras que alcançavam o teto, carregadas de utensílios para pesca, caça e criação de animais diversos - afinal, o predador humano, diferentemente das “bestas”, não se satisfaz somente ao abater suas presas, já que o sentimento de controle e poder preenche o vazio de maneira bem mais humana, demasiadamente humana. Gaiolas aprisionavam pássaros cujo canto desesperado enchia mais ainda o ambiente, que tinha espaço somente para o caminho de poucos passos da entrada até o balcão. 

Ela conhecia bem o balcão. Ela sabia que ele era de madeira outrora lustrada, e que sua superfície gasta era onde ele generosamente espalhava os filhotes de aves que ela adorava contemplar. Ele havia prometido presenteá-la com um filhote de pássaro preto, que ainda não tinha sido arrancado de seu habitat e capturado clandestinamente só para ela, mas ele disse que chegaria em breve, se ela se comportasse bem. E ela, tão distraída e inocente, nem percebia que ele a sentava em seu colo perverso, com um pau duro entre as pernas, e com as mãos esfregando o corpo de uma criança de sete anos por debaixo da blusa.

Essa era sua rotina, e a dele também. Ela não sabe dizer as datas, ou a frequência dessa rotina, ou se ela foi imposta claramente ou por ameaças sutis. Alguns detalhes são incertos, e talvez seja melhor assim. Mas outros detalhes são como zumbido de mosca no escuro, daqueles que não se pode escapar.

Um dia, a rotina mudou. Porque sempre muda, porque esse é o movimento típico e previsível de predadores humanos e seus comportamentos que escalam - preferencialmente pouco a pouco, como aquele pedaço de chocolate que não se mastiga, só para apreciar por mais tempo a textura e o gosto do que inevitavelmente se desintegrará.

E nesse dia aparentemente rotineiro, ela entrou pelo caminho estreito entre os sacos de ração e os choros dos pássaros, e percebeu que o balcão estava vazio. Onde está o pássaro preto que ele prometeu? Onde ele está? 

Atrás do balcão, ela viu os degraus para uma pequena porta aberta, para a qual se dirigiu vagarosamente. Ela nunca havia ultrapassado aquela porta, e seu coração disparado já previa o que estava por vir, porque sabia o que tinha vindo antes. E por mais que todas as vezes em que ela entrava pela porta da loja e se sentava no colo dele tenham sido acompanhadas pela sensação de medo contido e nó na garganta, dessa vez o medo parecia mais pulsante e pesado. Seu corpo pequeno tremia, exalando o suor de pavor. Os olhos exageradamente abertos olhavam ao redor - era tudo tão grande e alto, como ele. Após subir os dois degraus e passar pela porta, se deparou com uma área. Por cima de sua cabeça, o céu azul e sem nuvens. Nas paredes, gaiolas cheias e vazias. Do lado direito, um tanque de lavar roupas, árvores e mais gaiolas. 

De repente, ela ouviu um assovio, daqueles que homens usam quando querem abordar mulheres na rua.  O coração deu um salto de susto. Ela soltou um trêmulo “oi”. “Fiu-fiu” novamente, e ela disse “oi” mais uma vez, enquanto olhava para todos os lados para encontrar de onde vinha o som. Se virou para a esquerda, e viu outra porta à sua frente. Outra vez o assovio veio, e ela, se virando para o lado, encontrou uma passagem de onde parecia vir o som: de uma gaiola. O papagaio parecia avisar a seu dono que a presa estava próxima. E ele, como bom caçador, se manteve em silêncio.

Após solucionar o mistério do assovio, o medo e pavor pareciam puxá-la para a segunda porta, que também estava aberta. Passo a passo, ela se aproximava daquilo que depois seria enterrado bem fundo em sua memória, e que mudaria sua vida sem ela saber. 

Ela entrou. Chegou em uma cozinha, que atravessou até encontrar uma sala à sua frente e uma porta à direita, de onde vinha um ruído de televisão. A este ponto, o coração parecia sair pela boca, e seu interno lutava dentro de si, tentando negar o medo inevitável. “Mas ele é bonzinho, e vai me dar um pássaro preto”. 

Ao passar pela terceira e última porta, se deparou com o quarto de onde vinha o barulho de televisão. Ele estava sentado, numa cama ou sofá, segurando seu pau. “Vem cá, menina, tá tudo bem”, e estendeu a mão que estava vazia para ela. Ao se aproximar, ele pegou sua mão pequena, que ainda tinha aquelas dobrinhas gordas nos dedos característicos de um bebê. Ele dirigiu a mãozinha inocente até seu falo, fazendo, com sua mão grande por cima da mão pequena, o movimento para cima e para baixo, até que ela aprendeu a fazê-lo por si só. 

Na hora da despedida, ele sempre se agachava e abria os braços para ela abraçá-lo, enquanto ele aproveitava os últimos instantes que tinha para apalpar um pouco mais a barriga e o peito da infante. Mas dessa vez, quando se agachou para receber seu abraço, ela abaixou a cabeça, se virou, e não voltou nunca mais - exceto por uma última vez, nove anos depois, em que, ao olhar o rosto dele, se recordou, em flashbacks confusos e sem cronologia, de partes daquela rotina do passado. 

Mas essa já é outra história.

sábado, 4 de janeiro de 2020

Atrofia do amor


Por que as pessoas justificam atitudes “por amor”?
“Eu fiz o que achei que era melhor pra você porque te amo demais”
“Eu te controlo porque eu te amo demais”
“Eu encho sua cabeça de preocupações e paranóias porque eu te amo tanto que só quero te ver bem”

E quando você percebe que o amor que sempre recebeu e que sempre foi ensinada a oferecer é, no fim das contas, o triste resultado de corações partidos pelo abuso, de mentes condicionadas à inevitável negação de si mesmas, de existências fadadas à dor?

E quando você percebe que a dor pede justificativa - essa dor controladora que sempre te ofereceram vestida de afeto e cuidado - e que a única justificativa palatável é entender a própria disfunção dolorosa como amor?

E quando você se dá conta de que essa coisa que se diz ser amor sempre vem acompanhada de dor, como se a dor fosse um requisito necessário para amar, mas que na verdade só atrofia o amor? 

Como se desaprende a relacionar o afeto com o sofrimento? Por que é tão difícil perceber essa relação doentia? Por que é tão difícil rompê-la?

O que fica é a sensação de culpa por não aceitar do outro esse afeto doloroso, porque isso insufla ainda mais a dor no outro. E a culpa própria é também um indício de que se repete o mesmo padrão.

E quando você começa a ver as pessoas que ama com outros olhos, porque elas querem que você seja uma projeção do que elas mesmas gostariam de ser, mas não conseguem?

E quando você sente que esse ciclo sempre se repetiu e sempre se repetirá na sua vida, e que quando você reage a isso, tentando romper o ciclo, o abismo se mostra muito maior?

Minha amiga querida, eu só quero dizer que nada disso me surpreende mais, mas machuca.
Mãe, eu lamento muito, e me parte o coração.
Pai, a raiva de você sempre serviu de combustível pra me sentir viva, mas não mais, porque combustível é poluente que intoxica tudo. Agora já não sinto mais medo, e o que vejo é a caricatura decadente do que você nunca alcançou.