sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Dissonância cognitiva

Sinto apertar o peito quando os olhos se vidram num passado que, vez ou outra, ainda me parece tão aterrorizantemente vívido. Me acomete o desespero de ter perdido tudo, tudo que nunca tive.

Por vezes, todas as constatações e o sentido que consegui dar ao que vivi desmoronam em dúvida que consome os poros. Lembranças de momentos bons, ou triviais, ou de convivência serena - porque sim, devo admitir que eles existiram, apesar de ser terrível relembrá-los - afundam minha mente na confusão daquilo que parecia ser, mas não era... ou talvez tenha sido, por algum instante.

No meio do turbilhão de lembranças que atraem outras semelhantes, e outras ainda, sinto-me incapaz de discernir o que realmente aconteceu. Perco a noção e o juízo sobre aquilo que vivi, e doí, e doei.

A mente vacila, sem saber para onde vai: ao rememorar momentos bons, vagueia pesada pela crença nebulosa de que o que se viveu foi real, de que havia afeto sincero, de que nada de ruim foi intencional. Ao seguir por essa trilha, minha mente conclui que compreendeu mal tudo o que foi vivido. Vejo-me insignificante e mesquinha, com a sensação de que deixei para trás algo que não deveria ter deixado.

Me esforço para afastar esse assombroso desejo de voltar para o passado ao me lembrar dos momentos ruins; daquelas recorrentes agressões e das típicas humilhações jocosas, que pareciam até ter data marcada. Recorro às lembranças das minhas piores dores, na tentativa de atenuar a dissonância entre o real e a ilusão à qual me entreguei de olhos fechados. Busco aflita por meu corpo, e por alguma sensação que me traga de volta ao presente.

Quando a dissonância vai embora, o que fica é a sensação da dormência mental. Sinto o corpo flutuando num vazio que não é leve, ressaqueado pela miríade de emoções que insiste em me pegar desprevenida. 

Ainda falta aprender como não ser algoz de mim mesma.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Ele morreu.
Depois de aprisionar tanta gente em grades do abuso e do asco, acabou perecendo dentro de grades reais.

Ele se foi.
E com ele, findou-se o receio de que mais pessoas pudessem ser aprisionadas naquelas asquerosas grades que um dia ele foi.

Porque ele foi grade e corrente; emaranhado de coisas vis e perturbadoras; teia densa que ofuscou a minha luz, e a de tantas outras.

A possibilidade, contudo, de alertar essas tantas outras, para que não se tornassem outras mais, me escapou pelos dedos, deixando o gosto amargo da frustração causada pela paralisia sufocante, a única justificativa para meu silêncio de então.

E apesar do gosto amargo não morrer com ele, e nem a cicatriz se dissolver, as grades que um dia ele foi se derretem num passado merecedor do esquecimento.



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Eu não queria


Eu não queria a expectativa de uma nova mensagem, ou aquela dúvida sobre se falei demais. Eu não queria o sobressalto do coração com a mirada, ou o frio na barriga com o toque de mãos. Eu não queria me pegar pensando em momentos compartilhados, ou possíveis momentos futuros - e muito menos em um talvez. 

Tudo que quis evitar foi sentir o que se sente quando o afeto explode em luz e cor, movimentando as estruturas e revelando novas trajetórias do próprio sentir. Porque isso exige que eu me ame como nunca, que eu me sinta como nunca, que eu me respeite como nunca. A ideia de me perder (de novo) apavora. 

Eu não queria querer bem, querer estar perto, saber se está tudo bem. 

Eu não queria nada disso.

Mas a fortuna, deusa do acaso, parece querer o contrário.