domingo, 10 de julho de 2022

Linha solta

Eu me perco entre as palavras que devo dizer e aquelas que são potencialmente compráveis - monetizadas, me diriam.

Eu nunca soube me vender - respondo.

 E me sugerem agentes, empresas e um mundo, um mundo com o qual nunca fui familiarizada, e com o qual nunca quis me familiarizar. 

A barbárie, Adorno diz, toma sua forma mais acabada quando nos prostramos passivamente diante do horror, que já não conseguimos mais discernir como horror. Normalidade que, em uma concepção completamente distinta, já foucaultiana, se representa como dispositivo, qual seja, de disciplina ou sexualidade, talvez de absurdo, que nos leva a achar o absurdo um absurdo, mas será que o absurdo é tão absurdo assim? e reprimir o absurdo faz parte do próprio dispositivo do absurdo.

Talvez Foucault tenha morrido antes de viver na era do dispositivo do absurdo. Ou talvez fosse muito novo para compreendê-lo. 

O dispositivo do absurdo aparelha uma rede de leis, instituições, ditos e não ditos sobre a vida, a fim de controlar os corpos, via adestramento e regulação, sobre o que devem ou não fazer.

O absurdo dita a relação monogâmica heteronormativa patriarcal como correta e única. 

O absurdo dita a relação não normativa não patriarcal como instauradora de condutas igualmente normativas.

Existe uma necessidade tão absurda de monetização, padronização, normatização da vida que nos impõe uma regra para nos tornar boas, saudáveis, belas, aceitáveis. E nos perguntam: queres viver bem? Queres viver mais? Então, que vivas assim. E qual o motivo dessas perguntas sempre serem retóricas, nunca autênticas? E por que pensar que a resposta a tais perguntas, retóricas ou não, são positivas? 

Me sinto uma eterna linha solta no tecido homogeneamente costurado da vida. 

sábado, 9 de julho de 2022

Pequenas mortes

 Todo dia é uma pequena morte. 

Eu acordo qual um recém-nascido, em aflição profunda por sair do confortável espaço do sono - mesmo que o sono traga sonhos, e pesadelos, e ocasionais incômodos, pois o sono me deixa ser o que não sou, me deixa viver o que não se vive, me deixa existir não existindo. Tal o primeiro trauma do parto, a consciência vem à luz. A mente cobra o horário, o corpo cobra o café, e o coração fica escondido até a timidez passar.

Mas a timidez do coração não passa. Ela se esconde nas cortinas das tarefas, nas gavetas dos afazeres supérfluos, nas entranhas do lazer fútil e dos excessos repetidamente excessivos. A timidez do coração se nega a ver o mundo como ele é - cruel e implacável; um deserto de criaturas drenadas pela dor. 

E toda noite, na hora de dormir, meu coração sente que se protegeu de reconhecer o mundo de verdade. E cria a ilusão de que não quer morrer, porque o mundo não é assim como ele é. E se nega a abrir mão da vida; e anseia rasgar todas as cortinas, quebrar todas as gavetas e arreganhar as entranhas até se dissolverem. A mente se emaranha em encruzilhadas de pensamentos contínuos, o corpo luta até o último suspiro contra o fechar dos olhos, e o coração salta pela boca, fugindo da morte do sono. 

Mas aí, já é tarde demais. 

  

 

domingo, 22 de março de 2020

Horacinho,

eu te peço perdão por não ter podido fazer o suficiente, porque humanos quase nunca têm controle sobre as coisas, e não são perfeitos e sábios como gatinhos. 

Nós vivemos tantas coisas juntos... e mesmo com tantas mudanças, viagens, perdas e cachorros rondando a porta, você me deu o amor mais puro que já recebi de qualquer ser, humano ou não. Sua irmã está a te procurar, mas eu já expliquei pra ela que sua dor agora passou. No dia 01/04 você faria 6 anos, e nós estaremos na nossa casa nova nos lembrando de toda alegria que você sempre tinha de sobra pra compartilhar.

Eu agradeço a sua companhia, as disputas por um espaço na cama, o afeto quando nada ia bem - e quando tudo ia bem também. Guardarei a imagem dos olhinhos estrábicos pedindo colo toda noite antes de dormir. Eu te amo, bebezão. Obrigada por tudo.
(01/04/2014 - 19/03/2020)

domingo, 1 de março de 2020

cicatrizes

Gostaria de dizer que essas olheiras são do carnaval, ou que essa respiração pesada é do resfriado de dois dias atrás. Gostaria de acreditar que essa dor de cabeça é só pelo astigmatismo, e não pela pressão dos maxilares que se comprimem pelo ininterrupto estado de ansiedade. 

Gostaria de falar das marcas de meu corpo como troféus; dessas rugas entre as sobrancelhas como meros frutos da idade, e não da dor dilacerante que transborda pela constrição incessante do rosto. Gostaria de acreditar que essa coluna arqueada não é o resultado de tanto peso morto carregado por tanto tempo, em tão pouco tempo de vida.

Gostaria de ter a convicção de que esse olhar triste e esvaziado retomará o brilho de outrora, ou algum brilho que ainda não encontrou somente por uma questão de tempo, mas que está por vir. Gostaria de acreditar no futuro, nos planos, nas palavras e nas promessas. 

Mas sei que não posso nada disso.

E diante disso, tudo o que faço é zombar dessas olheiras e desses olhos perdidos, pois, ao menos assim, o sorriso permanece o mesmo. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Dissonância cognitiva

Sinto apertar o peito quando os olhos se vidram num passado que, vez ou outra, ainda me parece tão aterrorizantemente vívido. Me acomete o desespero de ter perdido tudo, tudo que nunca tive.

Por vezes, todas as constatações e o sentido que consegui dar ao que vivi desmoronam em dúvida que consome os poros. Lembranças de momentos bons, ou triviais, ou de convivência serena - porque sim, devo admitir que eles existiram, apesar de ser terrível relembrá-los - afundam minha mente na confusão daquilo que parecia ser, mas não era... ou talvez tenha sido, por algum instante.

No meio do turbilhão de lembranças que atraem outras semelhantes, e outras ainda, sinto-me incapaz de discernir o que realmente aconteceu. Perco a noção e o juízo sobre aquilo que vivi, e doí, e doei.

A mente vacila, sem saber para onde vai: ao rememorar momentos bons, vagueia pesada pela crença nebulosa de que o que se viveu foi real, de que havia afeto sincero, de que nada de ruim foi intencional. Ao seguir por essa trilha, minha mente conclui que compreendeu mal tudo o que foi vivido. Vejo-me insignificante e mesquinha, com a sensação de que deixei para trás algo que não deveria ter deixado.

Me esforço para afastar esse assombroso desejo de voltar para o passado ao me lembrar dos momentos ruins; daquelas recorrentes agressões e das típicas humilhações jocosas, que pareciam até ter data marcada. Recorro às lembranças das minhas piores dores, na tentativa de atenuar a dissonância entre o real e a ilusão à qual me entreguei de olhos fechados. Busco aflita por meu corpo, e por alguma sensação que me traga de volta ao presente.

Quando a dissonância vai embora, o que fica é a sensação da dormência mental. Sinto o corpo flutuando num vazio que não é leve, ressaqueado pela miríade de emoções que insiste em me pegar desprevenida. 

Ainda falta aprender como não ser algoz de mim mesma.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Ele morreu.
Depois de aprisionar tanta gente em grades do abuso e do asco, acabou perecendo dentro de grades reais.

Ele se foi.
E com ele, findou-se o receio de que mais pessoas pudessem ser aprisionadas naquelas asquerosas grades que um dia ele foi.

Porque ele foi grade e corrente; emaranhado de coisas vis e perturbadoras; teia densa que ofuscou a minha luz, e a de tantas outras.

A possibilidade, contudo, de alertar essas tantas outras, para que não se tornassem outras mais, me escapou pelos dedos, deixando o gosto amargo da frustração causada pela paralisia sufocante, a única justificativa para meu silêncio de então.

E apesar do gosto amargo não morrer com ele, e nem a cicatriz se dissolver, as grades que um dia ele foi se derretem num passado merecedor do esquecimento.



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Eu não queria


Eu não queria a expectativa de uma nova mensagem, ou aquela dúvida sobre se falei demais. Eu não queria o sobressalto do coração com a mirada, ou o frio na barriga com o toque de mãos. Eu não queria me pegar pensando em momentos compartilhados, ou possíveis momentos futuros - e muito menos em um talvez. 

Tudo que quis evitar foi sentir o que se sente quando o afeto explode em luz e cor, movimentando as estruturas e revelando novas trajetórias do próprio sentir. Porque isso exige que eu me ame como nunca, que eu me sinta como nunca, que eu me respeite como nunca. A ideia de me perder (de novo) apavora. 

Eu não queria querer bem, querer estar perto, saber se está tudo bem. 

Eu não queria nada disso.

Mas a fortuna, deusa do acaso, parece querer o contrário.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Do asco

Os olhos atentos buscavam por algo que ela não sabia discernir. Ela entrou no cômodo escuro e superlotado que trazia o odor característico e ainda tão vívido das rações animais, distribuídas em sacos desordenadamente espalhados pelas laterais do recinto. Nas paredes, prateleiras que alcançavam o teto, carregadas de utensílios para pesca, caça e criação de animais diversos - afinal, o predador humano, diferentemente das “bestas”, não se satisfaz somente ao abater suas presas, já que o sentimento de controle e poder preenche o vazio de maneira bem mais humana, demasiadamente humana. Gaiolas aprisionavam pássaros cujo canto desesperado enchia mais ainda o ambiente, que tinha espaço somente para o caminho de poucos passos da entrada até o balcão. 

Ela conhecia bem o balcão. Ela sabia que ele era de madeira outrora lustrada, e que sua superfície gasta era onde ele generosamente espalhava os filhotes de aves que ela adorava contemplar. Ele havia prometido presenteá-la com um filhote de pássaro preto, que ainda não tinha sido arrancado de seu habitat e capturado clandestinamente só para ela, mas ele disse que chegaria em breve, se ela se comportasse bem. E ela, tão distraída e inocente, nem percebia que ele a sentava em seu colo perverso, com um pau duro entre as pernas, e com as mãos esfregando o corpo de uma criança de sete anos por debaixo da blusa.

Essa era sua rotina, e a dele também. Ela não sabe dizer as datas, ou a frequência dessa rotina, ou se ela foi imposta claramente ou por ameaças sutis. Alguns detalhes são incertos, e talvez seja melhor assim. Mas outros detalhes são como zumbido de mosca no escuro, daqueles que não se pode escapar.

Um dia, a rotina mudou. Porque sempre muda, porque esse é o movimento típico e previsível de predadores humanos e seus comportamentos que escalam - preferencialmente pouco a pouco, como aquele pedaço de chocolate que não se mastiga, só para apreciar por mais tempo a textura e o gosto do que inevitavelmente se desintegrará.

E nesse dia aparentemente rotineiro, ela entrou pelo caminho estreito entre os sacos de ração e os choros dos pássaros, e percebeu que o balcão estava vazio. Onde está o pássaro preto que ele prometeu? Onde ele está? 

Atrás do balcão, ela viu os degraus para uma pequena porta aberta, para a qual se dirigiu vagarosamente. Ela nunca havia ultrapassado aquela porta, e seu coração disparado já previa o que estava por vir, porque sabia o que tinha vindo antes. E por mais que todas as vezes em que ela entrava pela porta da loja e se sentava no colo dele tenham sido acompanhadas pela sensação de medo contido e nó na garganta, dessa vez o medo parecia mais pulsante e pesado. Seu corpo pequeno tremia, exalando o suor de pavor. Os olhos exageradamente abertos olhavam ao redor - era tudo tão grande e alto, como ele. Após subir os dois degraus e passar pela porta, se deparou com uma área. Por cima de sua cabeça, o céu azul e sem nuvens. Nas paredes, gaiolas cheias e vazias. Do lado direito, um tanque de lavar roupas, árvores e mais gaiolas. 

De repente, ela ouviu um assovio, daqueles que homens usam quando querem abordar mulheres na rua.  O coração deu um salto de susto. Ela soltou um trêmulo “oi”. “Fiu-fiu” novamente, e ela disse “oi” mais uma vez, enquanto olhava para todos os lados para encontrar de onde vinha o som. Se virou para a esquerda, e viu outra porta à sua frente. Outra vez o assovio veio, e ela, se virando para o lado, encontrou uma passagem de onde parecia vir o som: de uma gaiola. O papagaio parecia avisar a seu dono que a presa estava próxima. E ele, como bom caçador, se manteve em silêncio.

Após solucionar o mistério do assovio, o medo e pavor pareciam puxá-la para a segunda porta, que também estava aberta. Passo a passo, ela se aproximava daquilo que depois seria enterrado bem fundo em sua memória, e que mudaria sua vida sem ela saber. 

Ela entrou. Chegou em uma cozinha, que atravessou até encontrar uma sala à sua frente e uma porta à direita, de onde vinha um ruído de televisão. A este ponto, o coração parecia sair pela boca, e seu interno lutava dentro de si, tentando negar o medo inevitável. “Mas ele é bonzinho, e vai me dar um pássaro preto”. 

Ao passar pela terceira e última porta, se deparou com o quarto de onde vinha o barulho de televisão. Ele estava sentado, numa cama ou sofá, segurando seu pau. “Vem cá, menina, tá tudo bem”, e estendeu a mão que estava vazia para ela. Ao se aproximar, ele pegou sua mão pequena, que ainda tinha aquelas dobrinhas gordas nos dedos característicos de um bebê. Ele dirigiu a mãozinha inocente até seu falo, fazendo, com sua mão grande por cima da mão pequena, o movimento para cima e para baixo, até que ela aprendeu a fazê-lo por si só. 

Na hora da despedida, ele sempre se agachava e abria os braços para ela abraçá-lo, enquanto ele aproveitava os últimos instantes que tinha para apalpar um pouco mais a barriga e o peito da infante. Mas dessa vez, quando se agachou para receber seu abraço, ela abaixou a cabeça, se virou, e não voltou nunca mais - exceto por uma última vez, nove anos depois, em que, ao olhar o rosto dele, se recordou, em flashbacks confusos e sem cronologia, de partes daquela rotina do passado. 

Mas essa já é outra história.

sábado, 4 de janeiro de 2020

Atrofia do amor


Por que as pessoas justificam atitudes “por amor”?
“Eu fiz o que achei que era melhor pra você porque te amo demais”
“Eu te controlo porque eu te amo demais”
“Eu encho sua cabeça de preocupações e paranóias porque eu te amo tanto que só quero te ver bem”

E quando você percebe que o amor que sempre recebeu e que sempre foi ensinada a oferecer é, no fim das contas, o triste resultado de corações partidos pelo abuso, de mentes condicionadas à inevitável negação de si mesmas, de existências fadadas à dor?

E quando você percebe que a dor pede justificativa - essa dor controladora que sempre te ofereceram vestida de afeto e cuidado - e que a única justificativa palatável é entender a própria disfunção dolorosa como amor?

E quando você se dá conta de que essa coisa que se diz ser amor sempre vem acompanhada de dor, como se a dor fosse um requisito necessário para amar, mas que na verdade só atrofia o amor? 

Como se desaprende a relacionar o afeto com o sofrimento? Por que é tão difícil perceber essa relação doentia? Por que é tão difícil rompê-la?

O que fica é a sensação de culpa por não aceitar do outro esse afeto doloroso, porque isso insufla ainda mais a dor no outro. E a culpa própria é também um indício de que se repete o mesmo padrão.

E quando você começa a ver as pessoas que ama com outros olhos, porque elas querem que você seja uma projeção do que elas mesmas gostariam de ser, mas não conseguem?

E quando você sente que esse ciclo sempre se repetiu e sempre se repetirá na sua vida, e que quando você reage a isso, tentando romper o ciclo, o abismo se mostra muito maior?

Minha amiga querida, eu só quero dizer que nada disso me surpreende mais, mas machuca.
Mãe, eu lamento muito, e me parte o coração.
Pai, a raiva de você sempre serviu de combustível pra me sentir viva, mas não mais, porque combustível é poluente que intoxica tudo. Agora já não sinto mais medo, e o que vejo é a caricatura decadente do que você nunca alcançou.


segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Sobre algo

De tantas coisas que eu poderia ou gostaria de dizer, hoje eu quero falar sobre algo cuja simples vontade de falar sobre já me atordoa. Os olhos que me encaram, livres e vivos, me fazem baixar a guarda de tanta carga e lembrança ruim. Por vezes, a memória do passado tenta invadir o recinto, mandando sinais de alerta contra qualquer aproximação: há coisas que eu não (me) permito mais, e muitas dessas coisas eu não sei se devo ou consigo voltar a permitir um dia. E quando a gente sente que toda a ideia de afeto que a gente tem é equivocada? Uma confusão entre apreço e sufocamento, entre partilha e fusão que despersonaliza? O que de tudo isso eu consigo discernir?

Não sei se algum dia existirá um nós nessa história, mas existe um eu, e um você, e olhares, e trocas. Existe alguma coisa que me faz querer dizer sobre. Existe um receio tipicamente ansioso de estragar tudo, de ir depressa demais, ou devagar demais, ou de não ir. Existem as inúmeras situações de gatilho, em que a memória se apodera do momento e me faz ter que lutar internamente para não deixá-la transparecer. Às vezes ela sai em forma de melancolias sutis, que me trazem de volta para o presente e me fazem perceber que aquele é um presente bom, e pelo qual sou grata.

Existe um sentimento tranquilo, diferente do que estou acostumada, diferente daquilo que sempre me fez confundir a típica ansiedade nauseante - daquelas que brotam no estômago e fecham a garganta - com aquela sensação de euforia que traz o frio gostoso na barriga. A ansiedade nauseante é aquela que o corpo sente quando a gente se envolve com quem a intuição pede o contrário - e como ela pede! ela grita em desespero, mas a gente escolhe ensurdecer. 

O frio na barriga, por sua vez, é o calor do corpo sussurrando suavemente para si: “vai; mas vai devagar, porque eu quero apreciar cada instante desse sentimento bom. Vai com receio, mas vai, porque cada um desses instantes bons vai sumir para o mundo, mas vai ficar em mim”.

domingo, 15 de dezembro de 2019

dissociação

Me vejo de longe, parada, uma versão de mim.
Sinto o gosto do que pude sentir e ser um dia. Ingenuidade de quem acreditava já não ser ingênua. Imaturidade de quem ainda era incapaz de perceber que sempre será imatura.

Me vejo de perto, um misto de sensações vazias. Calor-vazio que não aquece, vazio-afeto de estranhas caras a quem insisto anexar um afeto que está em mim, amor-vazio que assume rosto de casa, de uma casa vazia.

Me vejo de costas, a cabeça pendida para trás, com a mirada para mim. E eu que estou atrás, perdida num passado tão presente, percebo meu eu me mirando, dissociado de mim. Por mais clichê que isso possa parecer, não sei quem sou eu, e me vejo à parte, estranha, alheia a mim mesma.

Queria saber se olhar pra mim mesma significa a chance de um dia me alcançar.



sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Engasgos

Os últimos dias foram bons.

Tive a estranha sensação daquilo que é familiar mas que, apesar disso, é bom: a sensação de vida e ânimo e excitação pelo que estava por vir. Em termos neurológicos, a simples liberação mais acentuada de endorfina, serotonina, adrenalina e ocitocina . 

A lembrança dos últimos dias me leva a refletir sobre o que vem depois - sobre o que sempre vem depois, porque vem. Porque as doses de ocitocina aos poucos diminuem, e a gente anseia por mais, buscando no que já foi um dia, tentando reviver o que já não existe, e que talvez só existiu na nossa cabeça.

E o que vem depois? Depois vem a sensação, tão familiar, de dor e vazio. O que vem depois, portanto, se funde com o que está por vir - afinal, a mente não distingue o passado do futuro, mas sabe muito bem relacionar passados semelhantes a futuros previstos.

E num passado ainda tão próximo e pulsante, eu sentia muita dor e vazio. Eu não conseguia mais me levantar da cama.

Eu não entendia de onde vinha tanta dor. Por muitas vezes pensei que era “porque estava em outro país”, ou “longe de meus amigos” - ou fui induzida a pensar assim. Mas o período de adaptação inicial passou e não veio alívio algum - pelo contrário: mais vazio e mais dor. E apesar de ainda não compreender de onde vinha tanta dor, ela já tinha vindo antes, bem antes, várias vezes. 

Me recordo de meu corpo jogado na cama, entre blusas de frio e cobertores, completamente paralisado. Eu rogava tanto por momentos de solidão, em que eu poderia simplesmente sofrer da paralisia em paz e pensar. Olhar para o nada era meu hobby favorito, e trazia a sensação de transe ruim. E ali, deitada sob os mantos da quase insanidade, minha mente por vezes tentava sair do transe ruim - como quem engasga ao afogar, tentando expurgar o que sufoca. Esses engasgos eram lembranças tão específicas e casuais sobre momentos de conexão comigo mesma. A lembrança de estar deitada no chão do quarto, sentido o piso frio e a música suave, depois de uns exercícios de yoga que fazia na época em que morava sozinha. A lembrança de correr de manhã, o vento frio acordando o corpo todo.

Acordar. Era isso que eu pedia de mim.

Nesse passado tão recente, os engasgos me tentavam fazer lembrar do que eu era, do que eu poderia continuar sendo se não tivesse sido engolida pelo mar de boas sensações de um início que sempre tem fim. Os engasgos, que antes me lembravam de algo bom, que me faziam supor a possibilidade de encontrar uma saída que não a morte, agora tomam forma de algo mais sinistro. Porque hoje, depois de dias bons, os engasgos me recordam do que sempre veio depois - a paralisia, o vazio e a dor.

Me recordo dos últimos dias, de meu corpo leve, pousado sobre a cama, entre olhares e palavras trocadas, entre corpos tranquilos. Os níveis altos de endorfina, serotonina, adrenalina e ocitocina  traziam a sensação de transe bom. E ali, deitada sobre os lençóis de dias de contentamento, minha mente por vezes tentou sair do transe bom, tentando me recordar do que poderia vir depois e que já tinha vindo antes. A lembrança de minha paralisia num quarto frio e perverso. O olhar de desdém e as palavras de desprezo.

A ansiedade, que consome tudo, faz os músculos se contraírem quando o corpo percebe que está começando a relaxar, a deixar ser, a se permitir - porque o resultado disso tudo sempre foi dor e vazio. O corpo não quer sofrer novamente, a alma não quer morrer de novo, e de novo, e de novo. Então ela diz pro corpo: "você está em risco!" e o corpo engasga em memórias de vazio e de dor.

No fim das contas, meu corpo engasga porque se afunda fora de si.

Por vezes, contudo, conseguiu encontrar o mar de si mesmo, e a água que entrou por todos os poros não culminou no engasgo, porque é água viva, própria, sua. É água que transforma os pulmões em brânquias, que se desdobram em asas -

e em amor.

sábado, 30 de novembro de 2019

Rebentar

Um dia você me disse que eu era fraca demais para conseguir fazer qualquer coisa. Que eu ficava doente demais para poder planejar qualquer extravagância, por modesta que fosse. Por vezes você me disse que já não me admirava mais; e o que você via em mim e que te fazia me ver como um “pilar” já não estava mais lá.

Enquanto andava perdida pelas ruas frias e largas da grande cidade que nunca chove, enxugando o rosto salgado de dor e negação, forçava meus pulmões a puxar o ar que meu próprio corpo rejeitava, mas que era a única opção para sobreviver. Me sentei no degrau enquanto recuperava o fôlego e a lucidez para descobrir como voltar (para casa), o rosto molhado e cinza. A lembrança da humilhação, do torcer de olhos, da indiferença e do silêncio era o que sempre ficava impresso vividamente. A cabeça, pesada, percebia o ambiente como num sonho, enganando a memória para que se esquecesse do insuportável e se recordasse apenas do necessário para não morrer. O movimento automático das pernas frias era parecido com o modo como minha mente lidava com tudo aquilo: insistia em continuar, mesmo sabendo que buscava o caminho de volta para o que não era lar.

Por dias você me tratava com silêncio; por outros dias, com fúria; até que chegava o dia inesperado, mas tão esperado por mim, do suposto afeto, que eventualmente culminaria no retorno ao silêncio e à fúria. Incontáveis ciclos de silêncio, fúria e afeto, a perder de vista. Por vezes você ameaçava tirar sua vida; por outras vezes, a nossa. A mirada vazia, distante e furiosa, que por tantas vezes me alcançou, encobriu o olhar suave de outrora, que já nem sei se realmente existiu ou se foi mais uma ilusão.

Enquanto lutava para encontrar as melhores palavras que pudessem te fazer entender o que eu sentia; enquanto me esforçava para saber por qual motivo você nunca queria resolver os conflitos; enquanto tive lucidez mental pra tentar fazer sentido das conversas caóticas que depois, só depois se revelaram ser insidiosa e sutil manipulação, meu corpo se desnutria de luz e de cor, e minha mente se perdia num escuro que nem era meu.

Por anos você me teve; por anos me perdi de mim. Muito de minha vida eu tenho posto em dúvida: quais escolhas foram genuinamente minhas? Todas as mudanças, todos os desejos, todas as insatisfações. Qual foi minha verdadeira vontade durante esses anos?

Até que, como em um sonho bom dentro de um sonho ruim, algo aqui dentro virou, e eu pude respirar fundo. E ao respirar, acordei. Como uma casca oca de nozes, com o coração partido em tantos pedaços... mas acordei.

E agora me vejo tão diferente do que era. E sinto o fio de mim se tecendo aos poucos, tentando não se esticar demais. Senão, rebento - no presente do indicativo.



https://www.youtube.com/watch?v=D0wfX4n1BKo

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Corpo esvaziado

De todas as vitórias que pude viver, essa foi a menos desejada.
De todos os instantes que quis evitar, o instante da virada - daquela que parece a virada de um interruptor, cujo estalo ilumina a sala, mas revela as sombras - aquele instante da virada foi o mais evitado de todos.

Porque sobreviver ao véu da insanidade e da morte é, no mínimo, uma vitória. Mas uma vitória cujo preço é o despertar de um sonho de cores ilusórias advindas de uma trama sinistra, um pouco embaçada por seu próprio excesso de ilusão. 

É como se meu cérebro houvesse estalado: clac! e veio a luz. E com a luz, revelou-se a sombra daquilo que parecia amor, mas não era.

Eu me agarro às fotos antigas, às músicas de outrora; vestígios do que um dia pude sentir ser eu, e que não mais é. Eu, que pensava discernir o genuíno da ilusão. Eu, que pensava já não ser ingênua demais, agora me retorço pra reencontrar isso que achava que já não havia, mas que havia demais: a inocência de acreditar na empatia, mesmo quando ela parece inexistir em alguns corpos.

Corpos podem ser vazios de várias maneiras. Porque existem corpos vazios que, de tão vazios, sugam até a última gota de outros corpos. Mas também existem os corpos esvaziados, esses que foram sugados por corpos vazios. Será que corpos esvaziados permanecem vazios, ou são capazes de se nutrir novamente?

Como distinguir corpos esvaziados de corpos vazios?

O que se vê no outro está no outro ou em nós? Por que esperamos tanto, nos esforçamos tanto pra provar pra nós mesmas que o que vemos no outro é o que o outro é? Porque não é, e nem será, e nunca foi.

De todas as mortes que pude viver, essa foi a mais insana. De todas as vitórias que pude viver, essa foi a mais dolorosa.



terça-feira, 26 de novembro de 2019

Entre a lucidez e os flashbacks que mareiam a vista e embrulham o estômago, tomo coragem para continuar a viver. O instante que marca o dar-se conta dos fatos é um instante de luz e esclarecimento - o que a língua inglesa chamaria de “a-ha moment”. Mas esse instante também demanda esforço incomensurável, que é justamente o de encarar os fatos. Nesse instante, a boca, seca, pede um pouco de vida, e minha língua umedece os lábios de deserto.

Sempre tive o hábito de umedecer os lábios com a língua - especialmente antes de proferir algo sobre o qual refleti bastante antes de dizer. Sabe aquelas pequenas coisas que sempre estiveram lá, mas que de repente se encaixam perfeitamente, trazendo a surpresa um pouco frustrada de que o dar-se conta poderia ter vindo muito antes? e de que o tempo passou...

Em uma fatídica noite quente de primavera, refletia sobre lembranças incômodas de perda de mim mesma, quando umedeci os lábios com a língua - e aí, nesse instante de profundo desconforto, me recordei de que meu hábito havia sido apropriado por outra: por aquela que é a causa da perda de mim mesma.

Por um momento, duvidei sobre se meu hábito era realmente meu: não seria dela? Mas como, se minha memória distante incluía esse hábito em minha identidade muito antes de conhecê-la?
Lembrar-me nitidamente de seu rosto, expressão, do ato de umedecer os lábios - e de tantos outros traços e comportamentos que me foram roubados - me causa repulsa e mal-estar, além do confuso sentimento de despersonalização com o qual tenho lidado dia após dia.

O que é meu? O que sou eu?

E eu, que antes já me fazia essas mesmas perguntas, hoje as faço sob uma ótica tão mais crua e básica, tão mais próxima e real.

Até quando isso vai durar?

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Lar

Os cigarros se multiplicam no cinzeiro, mas ela não vê.

As cortinas abertas clamam por raios de sol, fagulhas cintilantes que clareiam o quarto. E num quarto que não é seu, rogando pela luz que não é sua, ela se desmancha no caos que, sim, é dela.

Indiferente ao ruído familiar, mergulha agora no que nunca viu, ou sentiu, ou aprendeu, ou foi: estalar longínquo que insiste em reclamar lugar, em pertencer, ensimesmar-se.

O lar que a reclama de dentro de si é ofuscado pela luz que não é sua, pelos raios de sol que as cortinas não conseguem tampar.

A dança das luzes se arrasta preguiçosa pelos dias.

Eventualmente, escurecerá.

sábado, 26 de outubro de 2019

Mais uma vez o caminho é cego e solto, leveza insustentável de uma liberdade desacostumada consigo mesma. Desoriento-me dentre os corredores de vida; sufoca-me a ânsia de respirar.
Não saio do lugar.

domingo, 28 de abril de 2013

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É estranho voltar nesse blog, ler todas essas coisas de anos atrás, perceber o quanto as coisas mudaram, o quanto eu mudei. Penso em deletar o blog, em começar de novo em outro lugar... mas pra quê? Com qual finalidade eu precisaria desfazer esse blog? Por que eu não quero encarar o que fui? Do quê eu quero fugir? Não faz sentido pra mim. Eu estaria apenas tentando dissimular aquilo que um dia fui e coisas que vivi, justamente porque eu sei que aquilo que fui ainda permanece de alguma maneira em mim - por meio das memórias e dos resquícios de sentimentos vividos que ficaram impressos em mim. Porque sim, esses resquícios ficam. Não que eles fiquem em forma de sentimento, propriamente dito; talvez, em forma de "meta-sentimento", ou sentimento do que um dia foi sentimento. Não sei dizer bem. Releio as postagens do passado e fico deveras perplexa com o quanto fui ridícula em vários momentos da minha vida. Sim, ridícula. Ridícula em pensar que poderia fazer o que fiz com as pessoas. Ridícula em pensar que poderia fazer o que fiz comigo mesma.

Mas agora passou. E só o que fica é o resquício - aquele borrão que não sai nem esfregando com água sanitária. E apesar de ser um mero borrão, ele ainda assim incomoda, até pesa às vezes. Mas se aprende a conviver com borrões - com vários borrões - ao longo da vida. Pelo menos é o que eu espero.
[alguns borrões são coloridos e belos e extremamente nostálgicos - esses não trazem tristeza, apesar de às vezes trazerem dor; mas não se pode pensar em alguns deles sem sentir asco.]

Já não escrevo nesse blog com tanto drama, escolhendo as palavras pra parecer algo que nem sei o que é (e nem para quem). Já não escrevo com tanto pudor, talvez por não me importar tanto quanto antes com o que vão pensar de mim. De tudo isso, o que me conforta é sentir que, enfim, já não sou a mesma - talvez ridícula em alguns aspectos, mas não mais ridícula como antes.

Sinto que só venho nesse blog quando sinto uma inquietação que tem que sair. No presente momento, a inquietação tem sido maior do que eu. E o fato de não poder fazer nada a respeito aumenta ainda mais a sensação. Enfim. (faço questão de terminar o texto sem uma frase bonita ou impactante, só assim.)


domingo, 30 de setembro de 2012

Da Pureza

Acho que tá na hora de eu voltar a escrever sobre algo que não seja acadêmico e nem filosófico.
Acho que tá na hora de me voltar pra mim mesma.

Tenho andado (ou melhor, corrido) tanto, mas tanto nos últimos meses, que não sei mais onde parei. Ultimamente, tenho me resumido em obrigações com horários, com reuniões de trabalho e com artigos de filosofia. "Tenho que isso", "preciso daquilo", "vou chegar atrasada", "não posso perder o foco". A não ser por algumas pitadas de alegria de fim de noite, em que a presença dela me faz esquecer (quase) toda essa correria, e o abraço forte me consola de toda dor.

Sinto que não consigo me dar por inteira em nada que tenho feito, porque é impossível mesmo. É impossível ser mil pessoas diferentes num dia, sem que uma se confunda com outra eventualmente.

No fim das contas não é nada demais; acho que tô virando gente grande, e só. Mas é doído, é pesado, é massacrante, ter que se dividir entre a mulher do trabalho, a mulher do estudo, a mulher dona-de-casa (sim, quem diria!), a mulher social, a mulher família, a mulher amante... e, finalmente, a mulher simplesmente, a mulher eu. Cadê essa mulher?

Acho que tá escondida num dos recantos de minha infância violentada, cuja cor e inocência foram roubadas por situações das quais nem me lembro direito. E essa mulher não se esconde somente na infância, mas também em uma juventude igualmente violentada, cujo amor-próprio e força foram arrancados com tamanha crueldade e insensibilidade como quando arrancam um brinquedo da mão de uma criança - daquela mesma criança que perdeu sua inocência sem nem saber porquê.

Tá mais do que na hora de deixar isso pra trás. De perdoar. De perceber que isso não me pertence - e nem nunca pertenceu - porque não veio de mim. Tá mais do que na hora de enxergar que esta mulher não se resume nesses pequenos abusos do passado, assim como não se resume nas miríades de obrigações do presente. Esta mulher possui, sim, cor, amor-próprio, força e coragem; por mais que tenham sido arrancados os galhos, a raiz permaneceu intacta: tá mais do que na hora de deixar as flores se abrirem.

E aquela inocência, ela ainda existe em mim, mesmo que tímida e receosa, e seus frutos podem ser percebidos naqueles momentos puros e belos em que se olha pro céu e se sente o coração bater forte.

Ana e Paulo, minha força e inocência é toda por vocês.


domingo, 24 de junho de 2012

Redescobrir


Como se fora a brincadeira de roda
Memória
Jogo do trabalho na dança das mãos
Macias
O suor dos corpos na canção da vida
História
O suor da vida no calor de irmãos
Magia

Como um animal que sabe da floresta
Memória
Redescobrir o sal que está na própria pele
Macia
Redescobrir o doce no lamber das línguas
Macias
Redescobrir o gosto e o sabor da festa
Magia

Vai o bicho homem, fruto da semente
Memória
Renascer da própria força, própria luz e fé
Memória
Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós
História
Somos a semente, ato, mente e voz
Magia

Não tenha medo, meu menino povo
Memória
Tudo principia na própria pessoa
Beleza
Vai como a criança que não teme o tempo
Mistério

Amor, se fazer, é tão prazer, que é como se fosse dor...


(Gonzaguinha)