domingo, 10 de julho de 2022

Linha solta

Eu me perco entre as palavras que devo dizer e aquelas que são potencialmente compráveis - monetizadas, me diriam.

Eu nunca soube me vender - respondo.

 E me sugerem agentes, empresas e um mundo, um mundo com o qual nunca fui familiarizada, e com o qual nunca quis me familiarizar. 

A barbárie, Adorno diz, toma sua forma mais acabada quando nos prostramos passivamente diante do horror, que já não conseguimos mais discernir como horror. Normalidade que, em uma concepção completamente distinta, já foucaultiana, se representa como dispositivo, qual seja, de disciplina ou sexualidade, talvez de absurdo, que nos leva a achar o absurdo um absurdo, mas será que o absurdo é tão absurdo assim? e reprimir o absurdo faz parte do próprio dispositivo do absurdo.

Talvez Foucault tenha morrido antes de viver na era do dispositivo do absurdo. Ou talvez fosse muito novo para compreendê-lo. 

O dispositivo do absurdo aparelha uma rede de leis, instituições, ditos e não ditos sobre a vida, a fim de controlar os corpos, via adestramento e regulação, sobre o que devem ou não fazer.

O absurdo dita a relação monogâmica heteronormativa patriarcal como correta e única. 

O absurdo dita a relação não normativa não patriarcal como instauradora de condutas igualmente normativas.

Existe uma necessidade tão absurda de monetização, padronização, normatização da vida que nos impõe uma regra para nos tornar boas, saudáveis, belas, aceitáveis. E nos perguntam: queres viver bem? Queres viver mais? Então, que vivas assim. E qual o motivo dessas perguntas sempre serem retóricas, nunca autênticas? E por que pensar que a resposta a tais perguntas, retóricas ou não, são positivas? 

Me sinto uma eterna linha solta no tecido homogeneamente costurado da vida. 

sábado, 9 de julho de 2022

Pequenas mortes

 Todo dia é uma pequena morte. 

Eu acordo qual um recém-nascido, em aflição profunda por sair do confortável espaço do sono - mesmo que o sono traga sonhos, e pesadelos, e ocasionais incômodos, pois o sono me deixa ser o que não sou, me deixa viver o que não se vive, me deixa existir não existindo. Tal o primeiro trauma do parto, a consciência vem à luz. A mente cobra o horário, o corpo cobra o café, e o coração fica escondido até a timidez passar.

Mas a timidez do coração não passa. Ela se esconde nas cortinas das tarefas, nas gavetas dos afazeres supérfluos, nas entranhas do lazer fútil e dos excessos repetidamente excessivos. A timidez do coração se nega a ver o mundo como ele é - cruel e implacável; um deserto de criaturas drenadas pela dor. 

E toda noite, na hora de dormir, meu coração sente que se protegeu de reconhecer o mundo de verdade. E cria a ilusão de que não quer morrer, porque o mundo não é assim como ele é. E se nega a abrir mão da vida; e anseia rasgar todas as cortinas, quebrar todas as gavetas e arreganhar as entranhas até se dissolverem. A mente se emaranha em encruzilhadas de pensamentos contínuos, o corpo luta até o último suspiro contra o fechar dos olhos, e o coração salta pela boca, fugindo da morte do sono. 

Mas aí, já é tarde demais.