sábado, 30 de novembro de 2019

Rebentar

Um dia você me disse que eu era fraca demais para conseguir fazer qualquer coisa. Que eu ficava doente demais para poder planejar qualquer extravagância, por modesta que fosse. Por vezes você me disse que já não me admirava mais; e o que você via em mim e que te fazia me ver como um “pilar” já não estava mais lá.

Enquanto andava perdida pelas ruas frias e largas da grande cidade que nunca chove, enxugando o rosto salgado de dor e negação, forçava meus pulmões a puxar o ar que meu próprio corpo rejeitava, mas que era a única opção para sobreviver. Me sentei no degrau enquanto recuperava o fôlego e a lucidez para descobrir como voltar (para casa), o rosto molhado e cinza. A lembrança da humilhação, do torcer de olhos, da indiferença e do silêncio era o que sempre ficava impresso vividamente. A cabeça, pesada, percebia o ambiente como num sonho, enganando a memória para que se esquecesse do insuportável e se recordasse apenas do necessário para não morrer. O movimento automático das pernas frias era parecido com o modo como minha mente lidava com tudo aquilo: insistia em continuar, mesmo sabendo que buscava o caminho de volta para o que não era lar.

Por dias você me tratava com silêncio; por outros dias, com fúria; até que chegava o dia inesperado, mas tão esperado por mim, do suposto afeto, que eventualmente culminaria no retorno ao silêncio e à fúria. Incontáveis ciclos de silêncio, fúria e afeto, a perder de vista. Por vezes você ameaçava tirar sua vida; por outras vezes, a nossa. A mirada vazia, distante e furiosa, que por tantas vezes me alcançou, encobriu o olhar suave de outrora, que já nem sei se realmente existiu ou se foi mais uma ilusão.

Enquanto lutava para encontrar as melhores palavras que pudessem te fazer entender o que eu sentia; enquanto me esforçava para saber por qual motivo você nunca queria resolver os conflitos; enquanto tive lucidez mental pra tentar fazer sentido das conversas caóticas que depois, só depois se revelaram ser insidiosa e sutil manipulação, meu corpo se desnutria de luz e de cor, e minha mente se perdia num escuro que nem era meu.

Por anos você me teve; por anos me perdi de mim. Muito de minha vida eu tenho posto em dúvida: quais escolhas foram genuinamente minhas? Todas as mudanças, todos os desejos, todas as insatisfações. Qual foi minha verdadeira vontade durante esses anos?

Até que, como em um sonho bom dentro de um sonho ruim, algo aqui dentro virou, e eu pude respirar fundo. E ao respirar, acordei. Como uma casca oca de nozes, com o coração partido em tantos pedaços... mas acordei.

E agora me vejo tão diferente do que era. E sinto o fio de mim se tecendo aos poucos, tentando não se esticar demais. Senão, rebento - no presente do indicativo.



https://www.youtube.com/watch?v=D0wfX4n1BKo

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Corpo esvaziado

De todas as vitórias que pude viver, essa foi a menos desejada.
De todos os instantes que quis evitar, o instante da virada - daquela que parece a virada de um interruptor, cujo estalo ilumina a sala, mas revela as sombras - aquele instante da virada foi o mais evitado de todos.

Porque sobreviver ao véu da insanidade e da morte é, no mínimo, uma vitória. Mas uma vitória cujo preço é o despertar de um sonho de cores ilusórias advindas de uma trama sinistra, um pouco embaçada por seu próprio excesso de ilusão. 

É como se meu cérebro houvesse estalado: clac! e veio a luz. E com a luz, revelou-se a sombra daquilo que parecia amor, mas não era.

Eu me agarro às fotos antigas, às músicas de outrora; vestígios do que um dia pude sentir ser eu, e que não mais é. Eu, que pensava discernir o genuíno da ilusão. Eu, que pensava já não ser ingênua demais, agora me retorço pra reencontrar isso que achava que já não havia, mas que havia demais: a inocência de acreditar na empatia, mesmo quando ela parece inexistir em alguns corpos.

Corpos podem ser vazios de várias maneiras. Porque existem corpos vazios que, de tão vazios, sugam até a última gota de outros corpos. Mas também existem os corpos esvaziados, esses que foram sugados por corpos vazios. Será que corpos esvaziados permanecem vazios, ou são capazes de se nutrir novamente?

Como distinguir corpos esvaziados de corpos vazios?

O que se vê no outro está no outro ou em nós? Por que esperamos tanto, nos esforçamos tanto pra provar pra nós mesmas que o que vemos no outro é o que o outro é? Porque não é, e nem será, e nunca foi.

De todas as mortes que pude viver, essa foi a mais insana. De todas as vitórias que pude viver, essa foi a mais dolorosa.



terça-feira, 26 de novembro de 2019

Entre a lucidez e os flashbacks que mareiam a vista e embrulham o estômago, tomo coragem para continuar a viver. O instante que marca o dar-se conta dos fatos é um instante de luz e esclarecimento - o que a língua inglesa chamaria de “a-ha moment”. Mas esse instante também demanda esforço incomensurável, que é justamente o de encarar os fatos. Nesse instante, a boca, seca, pede um pouco de vida, e minha língua umedece os lábios de deserto.

Sempre tive o hábito de umedecer os lábios com a língua - especialmente antes de proferir algo sobre o qual refleti bastante antes de dizer. Sabe aquelas pequenas coisas que sempre estiveram lá, mas que de repente se encaixam perfeitamente, trazendo a surpresa um pouco frustrada de que o dar-se conta poderia ter vindo muito antes? e de que o tempo passou...

Em uma fatídica noite quente de primavera, refletia sobre lembranças incômodas de perda de mim mesma, quando umedeci os lábios com a língua - e aí, nesse instante de profundo desconforto, me recordei de que meu hábito havia sido apropriado por outra: por aquela que é a causa da perda de mim mesma.

Por um momento, duvidei sobre se meu hábito era realmente meu: não seria dela? Mas como, se minha memória distante incluía esse hábito em minha identidade muito antes de conhecê-la?
Lembrar-me nitidamente de seu rosto, expressão, do ato de umedecer os lábios - e de tantos outros traços e comportamentos que me foram roubados - me causa repulsa e mal-estar, além do confuso sentimento de despersonalização com o qual tenho lidado dia após dia.

O que é meu? O que sou eu?

E eu, que antes já me fazia essas mesmas perguntas, hoje as faço sob uma ótica tão mais crua e básica, tão mais próxima e real.

Até quando isso vai durar?

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Lar

Os cigarros se multiplicam no cinzeiro, mas ela não vê.

As cortinas abertas clamam por raios de sol, fagulhas cintilantes que clareiam o quarto. E num quarto que não é seu, rogando pela luz que não é sua, ela se desmancha no caos que, sim, é dela.

Indiferente ao ruído familiar, mergulha agora no que nunca viu, ou sentiu, ou aprendeu, ou foi: estalar longínquo que insiste em reclamar lugar, em pertencer, ensimesmar-se.

O lar que a reclama de dentro de si é ofuscado pela luz que não é sua, pelos raios de sol que as cortinas não conseguem tampar.

A dança das luzes se arrasta preguiçosa pelos dias.

Eventualmente, escurecerá.