domingo, 22 de março de 2020

Horacinho,

eu te peço perdão por não ter podido fazer o suficiente, porque humanos quase nunca têm controle sobre as coisas, e não são perfeitos e sábios como gatinhos. 

Nós vivemos tantas coisas juntos... e mesmo com tantas mudanças, viagens, perdas e cachorros rondando a porta, você me deu o amor mais puro que já recebi de qualquer ser, humano ou não. Sua irmã está a te procurar, mas eu já expliquei pra ela que sua dor agora passou. No dia 01/04 você faria 6 anos, e nós estaremos na nossa casa nova nos lembrando de toda alegria que você sempre tinha de sobra pra compartilhar.

Eu agradeço a sua companhia, as disputas por um espaço na cama, o afeto quando nada ia bem - e quando tudo ia bem também. Guardarei a imagem dos olhinhos estrábicos pedindo colo toda noite antes de dormir. Eu te amo, bebezão. Obrigada por tudo.
(01/04/2014 - 19/03/2020)

domingo, 1 de março de 2020

cicatrizes

Gostaria de dizer que essas olheiras são do carnaval, ou que essa respiração pesada é do resfriado de dois dias atrás. Gostaria de acreditar que essa dor de cabeça é só pelo astigmatismo, e não pela pressão dos maxilares que se comprimem pelo ininterrupto estado de ansiedade. 

Gostaria de falar das marcas de meu corpo como troféus; dessas rugas entre as sobrancelhas como meros frutos da idade, e não da dor dilacerante que transborda pela constrição incessante do rosto. Gostaria de acreditar que essa coluna arqueada não é o resultado de tanto peso morto carregado por tanto tempo, em tão pouco tempo de vida.

Gostaria de ter a convicção de que esse olhar triste e esvaziado retomará o brilho de outrora, ou algum brilho que ainda não encontrou somente por uma questão de tempo, mas que está por vir. Gostaria de acreditar no futuro, nos planos, nas palavras e nas promessas. 

Mas sei que não posso nada disso.

E diante disso, tudo o que faço é zombar dessas olheiras e desses olhos perdidos, pois, ao menos assim, o sorriso permanece o mesmo. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Dissonância cognitiva

Sinto apertar o peito quando os olhos se vidram num passado que, vez ou outra, ainda me parece tão aterrorizantemente vívido. Me acomete o desespero de ter perdido tudo, tudo que nunca tive.

Por vezes, todas as constatações e o sentido que consegui dar ao que vivi desmoronam em dúvida que consome os poros. Lembranças de momentos bons, ou triviais, ou de convivência serena - porque sim, devo admitir que eles existiram, apesar de ser terrível relembrá-los - afundam minha mente na confusão daquilo que parecia ser, mas não era... ou talvez tenha sido, por algum instante.

No meio do turbilhão de lembranças que atraem outras semelhantes, e outras ainda, sinto-me incapaz de discernir o que realmente aconteceu. Perco a noção e o juízo sobre aquilo que vivi, e doí, e doei.

A mente vacila, sem saber para onde vai: ao rememorar momentos bons, vagueia pesada pela crença nebulosa de que o que se viveu foi real, de que havia afeto sincero, de que nada de ruim foi intencional. Ao seguir por essa trilha, minha mente conclui que compreendeu mal tudo o que foi vivido. Vejo-me insignificante e mesquinha, com a sensação de que deixei para trás algo que não deveria ter deixado.

Me esforço para afastar esse assombroso desejo de voltar para o passado ao me lembrar dos momentos ruins; daquelas recorrentes agressões e das típicas humilhações jocosas, que pareciam até ter data marcada. Recorro às lembranças das minhas piores dores, na tentativa de atenuar a dissonância entre o real e a ilusão à qual me entreguei de olhos fechados. Busco aflita por meu corpo, e por alguma sensação que me traga de volta ao presente.

Quando a dissonância vai embora, o que fica é a sensação da dormência mental. Sinto o corpo flutuando num vazio que não é leve, ressaqueado pela miríade de emoções que insiste em me pegar desprevenida. 

Ainda falta aprender como não ser algoz de mim mesma.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Ele morreu.
Depois de aprisionar tanta gente em grades do abuso e do asco, acabou perecendo dentro de grades reais.

Ele se foi.
E com ele, findou-se o receio de que mais pessoas pudessem ser aprisionadas naquelas asquerosas grades que um dia ele foi.

Porque ele foi grade e corrente; emaranhado de coisas vis e perturbadoras; teia densa que ofuscou a minha luz, e a de tantas outras.

A possibilidade, contudo, de alertar essas tantas outras, para que não se tornassem outras mais, me escapou pelos dedos, deixando o gosto amargo da frustração causada pela paralisia sufocante, a única justificativa para meu silêncio de então.

E apesar do gosto amargo não morrer com ele, e nem a cicatriz se dissolver, as grades que um dia ele foi se derretem num passado merecedor do esquecimento.



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Eu não queria


Eu não queria a expectativa de uma nova mensagem, ou aquela dúvida sobre se falei demais. Eu não queria o sobressalto do coração com a mirada, ou o frio na barriga com o toque de mãos. Eu não queria me pegar pensando em momentos compartilhados, ou possíveis momentos futuros - e muito menos em um talvez. 

Tudo que quis evitar foi sentir o que se sente quando o afeto explode em luz e cor, movimentando as estruturas e revelando novas trajetórias do próprio sentir. Porque isso exige que eu me ame como nunca, que eu me sinta como nunca, que eu me respeite como nunca. A ideia de me perder (de novo) apavora. 

Eu não queria querer bem, querer estar perto, saber se está tudo bem. 

Eu não queria nada disso.

Mas a fortuna, deusa do acaso, parece querer o contrário.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Do asco

Os olhos atentos buscavam por algo que ela não sabia discernir. Ela entrou no cômodo escuro e superlotado que trazia o odor característico e ainda tão vívido das rações animais, distribuídas em sacos desordenadamente espalhados pelas laterais do recinto. Nas paredes, prateleiras que alcançavam o teto, carregadas de utensílios para pesca, caça e criação de animais diversos - afinal, o predador humano, diferentemente das “bestas”, não se satisfaz somente ao abater suas presas, já que o sentimento de controle e poder preenche o vazio de maneira bem mais humana, demasiadamente humana. Gaiolas aprisionavam pássaros cujo canto desesperado enchia mais ainda o ambiente, que tinha espaço somente para o caminho de poucos passos da entrada até o balcão. 

Ela conhecia bem o balcão. Ela sabia que ele era de madeira outrora lustrada, e que sua superfície gasta era onde ele generosamente espalhava os filhotes de aves que ela adorava contemplar. Ele havia prometido presenteá-la com um filhote de pássaro preto, que ainda não tinha sido arrancado de seu habitat e capturado clandestinamente só para ela, mas ele disse que chegaria em breve, se ela se comportasse bem. E ela, tão distraída e inocente, nem percebia que ele a sentava em seu colo perverso, com um pau duro entre as pernas, e com as mãos esfregando o corpo de uma criança de sete anos por debaixo da blusa.

Essa era sua rotina, e a dele também. Ela não sabe dizer as datas, ou a frequência dessa rotina, ou se ela foi imposta claramente ou por ameaças sutis. Alguns detalhes são incertos, e talvez seja melhor assim. Mas outros detalhes são como zumbido de mosca no escuro, daqueles que não se pode escapar.

Um dia, a rotina mudou. Porque sempre muda, porque esse é o movimento típico e previsível de predadores humanos e seus comportamentos que escalam - preferencialmente pouco a pouco, como aquele pedaço de chocolate que não se mastiga, só para apreciar por mais tempo a textura e o gosto do que inevitavelmente se desintegrará.

E nesse dia aparentemente rotineiro, ela entrou pelo caminho estreito entre os sacos de ração e os choros dos pássaros, e percebeu que o balcão estava vazio. Onde está o pássaro preto que ele prometeu? Onde ele está? 

Atrás do balcão, ela viu os degraus para uma pequena porta aberta, para a qual se dirigiu vagarosamente. Ela nunca havia ultrapassado aquela porta, e seu coração disparado já previa o que estava por vir, porque sabia o que tinha vindo antes. E por mais que todas as vezes em que ela entrava pela porta da loja e se sentava no colo dele tenham sido acompanhadas pela sensação de medo contido e nó na garganta, dessa vez o medo parecia mais pulsante e pesado. Seu corpo pequeno tremia, exalando o suor de pavor. Os olhos exageradamente abertos olhavam ao redor - era tudo tão grande e alto, como ele. Após subir os dois degraus e passar pela porta, se deparou com uma área. Por cima de sua cabeça, o céu azul e sem nuvens. Nas paredes, gaiolas cheias e vazias. Do lado direito, um tanque de lavar roupas, árvores e mais gaiolas. 

De repente, ela ouviu um assovio, daqueles que homens usam quando querem abordar mulheres na rua.  O coração deu um salto de susto. Ela soltou um trêmulo “oi”. “Fiu-fiu” novamente, e ela disse “oi” mais uma vez, enquanto olhava para todos os lados para encontrar de onde vinha o som. Se virou para a esquerda, e viu outra porta à sua frente. Outra vez o assovio veio, e ela, se virando para o lado, encontrou uma passagem de onde parecia vir o som: de uma gaiola. O papagaio parecia avisar a seu dono que a presa estava próxima. E ele, como bom caçador, se manteve em silêncio.

Após solucionar o mistério do assovio, o medo e pavor pareciam puxá-la para a segunda porta, que também estava aberta. Passo a passo, ela se aproximava daquilo que depois seria enterrado bem fundo em sua memória, e que mudaria sua vida sem ela saber. 

Ela entrou. Chegou em uma cozinha, que atravessou até encontrar uma sala à sua frente e uma porta à direita, de onde vinha um ruído de televisão. A este ponto, o coração parecia sair pela boca, e seu interno lutava dentro de si, tentando negar o medo inevitável. “Mas ele é bonzinho, e vai me dar um pássaro preto”. 

Ao passar pela terceira e última porta, se deparou com o quarto de onde vinha o barulho de televisão. Ele estava sentado, numa cama ou sofá, segurando seu pau. “Vem cá, menina, tá tudo bem”, e estendeu a mão que estava vazia para ela. Ao se aproximar, ele pegou sua mão pequena, que ainda tinha aquelas dobrinhas gordas nos dedos característicos de um bebê. Ele dirigiu a mãozinha inocente até seu falo, fazendo, com sua mão grande por cima da mão pequena, o movimento para cima e para baixo, até que ela aprendeu a fazê-lo por si só. 

Na hora da despedida, ele sempre se agachava e abria os braços para ela abraçá-lo, enquanto ele aproveitava os últimos instantes que tinha para apalpar um pouco mais a barriga e o peito da infante. Mas dessa vez, quando se agachou para receber seu abraço, ela abaixou a cabeça, se virou, e não voltou nunca mais - exceto por uma última vez, nove anos depois, em que, ao olhar o rosto dele, se recordou, em flashbacks confusos e sem cronologia, de partes daquela rotina do passado. 

Mas essa já é outra história.

sábado, 4 de janeiro de 2020

Atrofia do amor


Por que as pessoas justificam atitudes “por amor”?
“Eu fiz o que achei que era melhor pra você porque te amo demais”
“Eu te controlo porque eu te amo demais”
“Eu encho sua cabeça de preocupações e paranóias porque eu te amo tanto que só quero te ver bem”

E quando você percebe que o amor que sempre recebeu e que sempre foi ensinada a oferecer é, no fim das contas, o triste resultado de corações partidos pelo abuso, de mentes condicionadas à inevitável negação de si mesmas, de existências fadadas à dor?

E quando você percebe que a dor pede justificativa - essa dor controladora que sempre te ofereceram vestida de afeto e cuidado - e que a única justificativa palatável é entender a própria disfunção dolorosa como amor?

E quando você se dá conta de que essa coisa que se diz ser amor sempre vem acompanhada de dor, como se a dor fosse um requisito necessário para amar, mas que na verdade só atrofia o amor? 

Como se desaprende a relacionar o afeto com o sofrimento? Por que é tão difícil perceber essa relação doentia? Por que é tão difícil rompê-la?

O que fica é a sensação de culpa por não aceitar do outro esse afeto doloroso, porque isso insufla ainda mais a dor no outro. E a culpa própria é também um indício de que se repete o mesmo padrão.

E quando você começa a ver as pessoas que ama com outros olhos, porque elas querem que você seja uma projeção do que elas mesmas gostariam de ser, mas não conseguem?

E quando você sente que esse ciclo sempre se repetiu e sempre se repetirá na sua vida, e que quando você reage a isso, tentando romper o ciclo, o abismo se mostra muito maior?

Minha amiga querida, eu só quero dizer que nada disso me surpreende mais, mas machuca.
Mãe, eu lamento muito, e me parte o coração.
Pai, a raiva de você sempre serviu de combustível pra me sentir viva, mas não mais, porque combustível é poluente que intoxica tudo. Agora já não sinto mais medo, e o que vejo é a caricatura decadente do que você nunca alcançou.