sábado, 9 de julho de 2022

Pequenas mortes

 Todo dia é uma pequena morte. 

Eu acordo qual um recém-nascido, em aflição profunda por sair do confortável espaço do sono - mesmo que o sono traga sonhos, e pesadelos, e ocasionais incômodos, pois o sono me deixa ser o que não sou, me deixa viver o que não se vive, me deixa existir não existindo. Tal o primeiro trauma do parto, a consciência vem à luz. A mente cobra o horário, o corpo cobra o café, e o coração fica escondido até a timidez passar.

Mas a timidez do coração não passa. Ela se esconde nas cortinas das tarefas, nas gavetas dos afazeres supérfluos, nas entranhas do lazer fútil e dos excessos repetidamente excessivos. A timidez do coração se nega a ver o mundo como ele é - cruel e implacável; um deserto de criaturas drenadas pela dor. 

E toda noite, na hora de dormir, meu coração sente que se protegeu de reconhecer o mundo de verdade. E cria a ilusão de que não quer morrer, porque o mundo não é assim como ele é. E se nega a abrir mão da vida; e anseia rasgar todas as cortinas, quebrar todas as gavetas e arreganhar as entranhas até se dissolverem. A mente se emaranha em encruzilhadas de pensamentos contínuos, o corpo luta até o último suspiro contra o fechar dos olhos, e o coração salta pela boca, fugindo da morte do sono. 

Mas aí, já é tarde demais. 

  

 

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