sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Engasgos

Os últimos dias foram bons.

Tive a estranha sensação daquilo que é familiar mas que, apesar disso, é bom: a sensação de vida e ânimo e excitação pelo que estava por vir. Em termos neurológicos, a simples liberação mais acentuada de endorfina, serotonina, adrenalina e ocitocina . 

A lembrança dos últimos dias me leva a refletir sobre o que vem depois - sobre o que sempre vem depois, porque vem. Porque as doses de ocitocina aos poucos diminuem, e a gente anseia por mais, buscando no que já foi um dia, tentando reviver o que já não existe, e que talvez só existiu na nossa cabeça.

E o que vem depois? Depois vem a sensação, tão familiar, de dor e vazio. O que vem depois, portanto, se funde com o que está por vir - afinal, a mente não distingue o passado do futuro, mas sabe muito bem relacionar passados semelhantes a futuros previstos.

E num passado ainda tão próximo e pulsante, eu sentia muita dor e vazio. Eu não conseguia mais me levantar da cama.

Eu não entendia de onde vinha tanta dor. Por muitas vezes pensei que era “porque estava em outro país”, ou “longe de meus amigos” - ou fui induzida a pensar assim. Mas o período de adaptação inicial passou e não veio alívio algum - pelo contrário: mais vazio e mais dor. E apesar de ainda não compreender de onde vinha tanta dor, ela já tinha vindo antes, bem antes, várias vezes. 

Me recordo de meu corpo jogado na cama, entre blusas de frio e cobertores, completamente paralisado. Eu rogava tanto por momentos de solidão, em que eu poderia simplesmente sofrer da paralisia em paz e pensar. Olhar para o nada era meu hobby favorito, e trazia a sensação de transe ruim. E ali, deitada sob os mantos da quase insanidade, minha mente por vezes tentava sair do transe ruim - como quem engasga ao afogar, tentando expurgar o que sufoca. Esses engasgos eram lembranças tão específicas e casuais sobre momentos de conexão comigo mesma. A lembrança de estar deitada no chão do quarto, sentido o piso frio e a música suave, depois de uns exercícios de yoga que fazia na época em que morava sozinha. A lembrança de correr de manhã, o vento frio acordando o corpo todo.

Acordar. Era isso que eu pedia de mim.

Nesse passado tão recente, os engasgos me tentavam fazer lembrar do que eu era, do que eu poderia continuar sendo se não tivesse sido engolida pelo mar de boas sensações de um início que sempre tem fim. Os engasgos, que antes me lembravam de algo bom, que me faziam supor a possibilidade de encontrar uma saída que não a morte, agora tomam forma de algo mais sinistro. Porque hoje, depois de dias bons, os engasgos me recordam do que sempre veio depois - a paralisia, o vazio e a dor.

Me recordo dos últimos dias, de meu corpo leve, pousado sobre a cama, entre olhares e palavras trocadas, entre corpos tranquilos. Os níveis altos de endorfina, serotonina, adrenalina e ocitocina  traziam a sensação de transe bom. E ali, deitada sobre os lençóis de dias de contentamento, minha mente por vezes tentou sair do transe bom, tentando me recordar do que poderia vir depois e que já tinha vindo antes. A lembrança de minha paralisia num quarto frio e perverso. O olhar de desdém e as palavras de desprezo.

A ansiedade, que consome tudo, faz os músculos se contraírem quando o corpo percebe que está começando a relaxar, a deixar ser, a se permitir - porque o resultado disso tudo sempre foi dor e vazio. O corpo não quer sofrer novamente, a alma não quer morrer de novo, e de novo, e de novo. Então ela diz pro corpo: "você está em risco!" e o corpo engasga em memórias de vazio e de dor.

No fim das contas, meu corpo engasga porque se afunda fora de si.

Por vezes, contudo, conseguiu encontrar o mar de si mesmo, e a água que entrou por todos os poros não culminou no engasgo, porque é água viva, própria, sua. É água que transforma os pulmões em brânquias, que se desdobram em asas -

e em amor.

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