terça-feira, 26 de novembro de 2019

Entre a lucidez e os flashbacks que mareiam a vista e embrulham o estômago, tomo coragem para continuar a viver. O instante que marca o dar-se conta dos fatos é um instante de luz e esclarecimento - o que a língua inglesa chamaria de “a-ha moment”. Mas esse instante também demanda esforço incomensurável, que é justamente o de encarar os fatos. Nesse instante, a boca, seca, pede um pouco de vida, e minha língua umedece os lábios de deserto.

Sempre tive o hábito de umedecer os lábios com a língua - especialmente antes de proferir algo sobre o qual refleti bastante antes de dizer. Sabe aquelas pequenas coisas que sempre estiveram lá, mas que de repente se encaixam perfeitamente, trazendo a surpresa um pouco frustrada de que o dar-se conta poderia ter vindo muito antes? e de que o tempo passou...

Em uma fatídica noite quente de primavera, refletia sobre lembranças incômodas de perda de mim mesma, quando umedeci os lábios com a língua - e aí, nesse instante de profundo desconforto, me recordei de que meu hábito havia sido apropriado por outra: por aquela que é a causa da perda de mim mesma.

Por um momento, duvidei sobre se meu hábito era realmente meu: não seria dela? Mas como, se minha memória distante incluía esse hábito em minha identidade muito antes de conhecê-la?
Lembrar-me nitidamente de seu rosto, expressão, do ato de umedecer os lábios - e de tantos outros traços e comportamentos que me foram roubados - me causa repulsa e mal-estar, além do confuso sentimento de despersonalização com o qual tenho lidado dia após dia.

O que é meu? O que sou eu?

E eu, que antes já me fazia essas mesmas perguntas, hoje as faço sob uma ótica tão mais crua e básica, tão mais próxima e real.

Até quando isso vai durar?

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